A direita, a esquerda e o umbigo

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Existe uma polarização, um muro que não caiu em Berlim, quando se “mexe” com política no Brasil. Esse assunto, aliás, não se discute por aqui. É algo pra ser cutucado, contornado, algo com que “se mexe”. Mas, já que o Facebook nos força a ver todo laico dia uma louvável, embora parva, tentativa de debate,  aproveitemos a oportunidade para entender o posicionamento de cada um. Até pra não ficar em posição comprometedora.

Eu sei, eu sei, direita e esquerda são conceitos aparentemente ultrapassados, extremos pretos e brancos numa paleta que tem mais de cinquenta tons de cinza. São dois lados de uma guerra que esfriou, eu sei. Mas a culpa não é minha: se todo mundo insiste em se organizar assim, do sistema político à cor da roupa, dos hábitos de consumo à legenda do partido, então temos que partir desta pedra de toque para, se for o caso, praticarmos a teoria pós-moderna que alguém eventualmente queira apontar contra a minha cabeça.

Então estamos polarizados entre direita e esquerda que são, pura e simplesmente, formas de governo. De governo. Não são formas de cultura, nem de sociedade. Não são modos de vida, não determinam como alguém deve arrumar o cabelo nem o que pode comprar. Se elas viraram isso tudo é o primeiro sinal de que, coitadas, estão transviadas.  Ou assim me parecem. Posicionamento político é um entre os milhares de fatores que compõem a vida social. A preponderância absoluta de qualquer desses fatores (seja política, religião, raça ou pro

fissão, por exemplo), acaba em tragédia, não tem jeito.

A questão

Mas persistem a direita e a esquerda. E, grosso modo, elas podem ser definidas assim:

  • Direita – Entende que os indivíduos e suas instituições, guardadas as proporções, devem ser maiores que o Estado.
  • Esquerda – Entende que o Estado deve ser, guardadas as proporções, maior que os indivíduos e suas instituições.

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Nenhuma das duas coisas tem a ver com Estados Unidos ou com Rússia, com ditadura ou com democracia. Tem a ver apenas com pontos de vista políticos. Política, do grego, pólis (cidade), é, em sua definição mais clássica, aquilo que trata da organização da vida em sociedade. Portanto, tem a ver com Estados, instituições, governos. Assim como tem a ver com casas, famílias e indivíduos.  As duas coisas são meio que interdependentes, como você bem deve saber. Quem discordar, perde automaticamente a razão ao manifestar amor, ódio, contrariedade ou apoio a qualquer coisa relacionada a política.

Pois bem. Ao escolher se posicionar em um dos dois polos acima, você também escolhe a consequência deste posicionamento, que tem, como tudo no mundo, prós e contras. Comecemos pelos prós.

À direita, idealmente, você contaria com um Estado “mínimo”, ou seja, menos gente cuidando de leis e da sua vida – e a vida dos outros.  Também haveria menos impostos, porque impostos servem para sustentar os mecanismos do Estado, que, nesse caso, recrudesceria ao mínimo necessário. Outro ponto positivo seria contar com menos burocracia, que é um mecanismo de controle estatal, tornando mais simples que indivíduos empreendam.

À esquerda, idealmente, o Estado toma conta de seus cidadãos. Portanto, você precisaria se preocupar menos com o seu futuro e o dos seus, já que haveria mecanismos e programas que garantiriam condições mínimas para todos.  Serviços básicos como saúde, educação e transportes seriam subsidiados pelo Estado e estariam ao alcance de todos.

O problema

Politica4Até aqui, parece claro, não há nada que torne pessoas à direita ou à esquerda diferentes. São apenas maneiras diversas de assegurar a mesma coisa: prosperidade para um povo. Mas pontos positivos não fazem desaparecer os negativos. E contrapontos devem ser considerados.

Na direita, idealmente, não há garantias do Estado para indivíduos.  O resultado mais comum é a geração de uma parcela da população mais favorecida e uma menos favorecida. Condição que, se levada ao extremo, pode gerar desigualdades sociais intensas. Outro ponto é que, mais sujeito a interesses individuais, o mercado se desregule e torne a economia instável e susceptível a grandes crises, o que só aumentaria a desigualdade social.

Na esquerda, idealmente, paga-se uma carga tributária muito alta, desapoderando o indivíduo.  Poupar também se torna mais oneroso, já que a economia se apoia principalmente em forças internas. O resultado é uma dificuldade de ascensão social que, em casos de desigualdade extrema, pode ser um ciclo de perpetuação da pobreza. O controle e a indexação da economia pelo Estado só agrava este quadro, cristalizando a desigualdade social.

Agora há menos diferenças ainda  entre as pessoas de um lado e do outro. O problema delas é, basicamente, o mesmo: escassez. Ou, para falar claro, pobreza. Não importa o caminho percorrido, o produto final vai ser gente pobre. E de pobre, ninguém gosta. Os da direita não querem que eles existam. Os da esquerda querem torná-los “menos pobres”, incluí-los, enfim, acabar com a existência deles.

E, se foi por caminhos diversos que ambos chegaram a pobreza, é por caminhos diversos que ambos pretendem sair.

O espelho

Politica3Vamos brincar de espelho e seguir ao contrário, apenas para que fique claro que a pobreza revira não apenas os nossos estômagos, mas também o texto. Se até ela viemos com a direita na frente, por uma questão alfabética, dela em diante seguimos com a esquerda primeiro, pra ver se equilibra.

Quem está à esquerda, como é fácil imaginar, tem que contar com o Estado para combater a pobreza. Programas de combate à fome, de aceleração do crescimento, pacotes de fomento à economia e ao empreendedorismo. É de TODOS  a responsabilidade pela pobreza. Idealmente, o esquerdista aceita pagar mais (impostos) para que resolvam por ele os problemas da polis. Resumo da ópera: O indivíduo de esquerda emprega dinheiro para ver o problema resolvido.

Finalmente, quem está à direita, vai ter que contar com os indivíduos e suas instituições para erradicar a pobreza. Não vai ter Estado para resolver. Organizações não-governamentais são, strictu sensu , de direita, pois significa que a sociedade civil (e não o Estado) está se mobilizando para resolver um problema.  É de TODOS a responsabilidade pela riqueza. Idealmente, o direitista entende que precisa trabalhar para resolver os problemas das polis. Resumo da ópera: O indivíduo de direita emprega trabalho pra ver o problema resolvido.

Embananou: o que era individualista agora parece coletivista e vice-versa, certo? Basta uma adversidade para torcer conceitos…

A solução

PoliticaFoi preciso fazer toda essa viagem para que, chegado a esse ponto, o raciocínio fique bastante claro: quem atribui características “altruístas” ou “egoístas” a posicionamentos políticos, quem lhes dá cores “boas” ou “más” não são suas premissas  e filosofias, mas seus usos culturais.

Incomoda pensar nisso mas, no que tange a resolução de problemas a partir da perspectiva do indivíduo, filosofias de esquerda são radicalmente mais individualistas que as de direita. Enquanto as de direita, por outro lado, sob a mesma perspectiva, pressupõe uma dependência forçada entre indivíduos da mesma sociedade.

E não é difícil achar um exemplo: basta pensar no quanto a sociedade norte-americana (um dos maiores exemplos de sociedade de direita do mundo atual) se mobiliza em eventos de caridade. E no quanto a sociedade chinesa (se não o maior, o mais emblemático exemplo de sociedade de esquerda contemporânea) não.  Reducionista, mas preciso. Eventos filantrópicos são perfeitamente adequados à “Ética protestante e o espírito do capitalismo”. Políticas de bem estar social se encaixam com facilidade a “O capital”.

Pensar nisso é importante para, por exemplo, decidir em quem votar ou o que compartilhar no Facebook. Talvez uma boa forma de decidir se você é de direita ou de esquerda seja pensar: como você deseja resolver problemas como a pobreza? Com seu trabalho ou com seu dinheiro?

O umbigo

Politica1Se a resposta para a pergunta acima foi “nenhum dos dois”, você talvez não seja nem de direita, nem de esquerda. Pode ser que seja pós-moderno. Ou que esteja entre os dois.

A verdade é que, embora nos polarizemos em entre direita e esquerda em debates, nada do que existe hoje, especialmente no Brasil, se encaixa em nenhuma das duas coisas. Temos governos que financiam ongs. Precisa dizer mais?

O problema é que a esquizofrenia política, quando deságua na esfera cultural, produz preconceitos e ideias irritantes e ignorantes, que se multiplicam com facilidade muito maior do que o esclarecimento. Nesta cepa estão as ideias de que, por exemplo, esquerda é sinônimo de regimes totalitários, de gente barbuda e suja, de cultura libertária, de baderna e de revolução. Ou, por outro lado, de que direita é sinônimo de regimes ditatoriais, de gente coxinha, de conservadorismo cultural, de repressão e de golpe.

Na verdade, isso tudo é produto de um imaginário produzido por gente que construiu a nossa política – e a de um bando de países – e que, de política, no sentido apontado lá em cima, tem muito pouco. Gente que caga pra polis. Quando você pensa em Collor, acha que ele decidiria combater a pobreza com seu dinheiro ou seu trabalho? E Itamar Franco? FHC? Lula? Dilma? D. João VI?

A maioria dos nossos políticos – e das pessoas que o seguem – não se caracterizam, como fazem crer seus discursos, por direita ou esquerda. Eles estão em algum lugar no meio disso.  O umbigo.

Quem é partidário do umbigo vai se dizer de esquerda e militar nas ruas, levantar bandeira e dar gritos de ordem, louco para virar o Estado e resolver o problema com as próprias mãos. Ou vai compartilhar mensagem de ódio contra a Dilma e se dizer de direita ao mesmo tempo em que espera que o Estado resolva os problemas do país.

O umbiguista sofre de uma síndrome de Tourette política que faz com que ele grite, berre, compartilhe, ao menor sinal do assunto. Importa mais o barulho do que o seu conteúdo.  Ele não quer saber da pobreza, ele quer que notem o problema. No caso, o dele. O umbiguista quer aqui e quer agora. E não abre mão nem do seu dinheiro, nem do seu tempo. Porque “quando ele chegou já tava assim”. Ele é vítima. Sempre. O umbiguista é a parcela política mais representativa do Brasil.

O umbigo fica entre a direita e a esquerda, sempre pronto para lembrar que, não importa o tamanho da polis, somos um bando de primatas, mamíferos e escravos de instintos muito menos refinados do que essa tal ciência política. Alguns de nós, entretanto, insistem em “mexer” com ela…

Eu não sou gente de humanas

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WorkTenho uma amiga que diz que conhece poucas profissões: médico, advogado, engenheiro… no máximo farmacêutico, vá lá. O resto, ela diz, é tudo designer. Não a culpo. Quase todo mundo hoje em dia é “designer”. E a julgar por esse texto, compartilhadíssimo ontem, eles tendem a continuar se multiplicando.

É super tentador concordar e se render ao romântico ideal de que quem faz Humanas realmente está fadado a ganhar pouco e se divertir muito. Super confortável, portanto, justificar o eventual insucesso profissional pelo fato de que o mundo é assim mesmo e, se tudo acabar em pizza, que seja com borda de catupiry. Exceto que se as coisas fossem tão simples, não haveria as Ciências Humanas pra explicá-las.

Em primeiro lugar, eu sinto muito dizer, mas você cresceu. E não importa o quão simpatizante você seja de qualquer sistema diferente do capitalismo, a não ser que você viva no mato, plantando e pescando, ele é sua realidade. Até para mudá-lo, é preciso admiti-lo. Aliás, se você fez humanas e não sabe disso, você precisa estudar mais. Pois bem, viver num sistema capitalista significa que você precisa vender sua mão de obra, seu trabalho, se quiser ter dinheiro. Mais valias à parte, você também pode ser proprietário dos meios de produção e ter seu próprio negócio.

Repare que este trabalho ou negócio pode ser de qualquer natureza: o que quer que você faça pode ser comercializado. No entanto, existem leis de oferta e demanda influenciando esta coisa chamada mercado (o de trabalho aí incluso) e sua lógica é simples: quanto maior a oferta, menor o preço. O equilíbrio se dá pelo contraponto de que o preço sobe quanto maior for a demanda.

Perdoe meu economês. É básico. Básico o bastante para ser inclusive parte dos currículos obrigatórios de Economia, Administração, Ciências Sociais, Comunicação, Serviço Social e mais um punhado de ciências (vejam só!) humanas aplicadas. Mas se você acha que isso tudo é demais para uma cabeça puramente humana, pare e pense: quantos designers você conhece? Oferta grande, certo? Logo, preço baixo. Só me restringi a essa profissão para manter a nomenclatura da minha amiga, mas preencham a lacuna como melhor lhe aprouver.

“Ah, então ser designer – ou artista plástico, ou ator, ou jornalista, ou tradutor – é uma desgraça e vai ser pobre mesmo?”. Não necessariamente. A CEO da empresa que trabalho é jornalista. Roberto Justus é publicitário. Donald Trump também. Conheço uma pedagoga que é gerente de treinamento e até um executivo de multinacional que, vocês não vão acreditar, é designer!

Work3Mas, e sempre há um mas, já escuto gente bocejando. Qual a graça de ser designer se você vai virar gerente, vai ter que ler planilhas, vai virar o seu pai, não é mesmo? Em suma, que vai ter adiantado fazer Humanas se, no fim, vai ser preciso trabalhar mais e se divertir menos, igual qualquer biológico ou exatóide racionalista? Bom, seja lá qual for a resposta, a certeza é uma só: você vai ter dinheiro.

A verdade é que o Brasil está crescendo, exatamente como você, amiguinho. E assim como você precisou de leite materno pra desenvolver mielina, de danoninho pra ter ossos fortes e de carne pra ficar “fortão”, o Brasil precisa de engenheiro pra construir pontes, estradas, cidades, pra tirar petróleo, pra criar fontes de energia sustentável. Precisa de médicos, a ponto de querer trazer de fora e de qualquer jeito, pra atender gente que morre porque bebe água em regiões onde você não chegaria nem fazendo ecoturismo. Precisa de professores, pra educar a população que vai andar por aquelas estradas e cidades que estão emergindo.

Aliás, professores merecem um parágrafo só deles: mesmo entre os de Humanas, nunca conheci algum que tivesse esse “senso de freelancer”, essa lúdica falta de foco, esse hedonismo profissional que abunda nos designers lato sensu. Professores estão lá, trabalhando muito e ganhando nada, mas estão tão obviamente construindo um país a base de pau a pique (sobra pau e falta pique), que não conheço engenheiro, executivo ou médico que lhes ponha em xeque a utilidade. Até o governo reconhece que lhes paga uma miséria (embora faça muito pouco pra mudá-lo). Raramente um deles escreverá num blog sobre as delícias de ser de Humanas, ganhar pouco e discutir Bukowski com os amigos – embora eles provavelmente entendam mais sobre literatura do que a galerinha problogger.

Mas não percamos o foco, que não quero ser acusado do que critico. Fato é que, se você quer crescer, – e ajuda o crescimento do país, cidade ou comunidade em que vive – trabalhar é preciso. E trabalhar não é divertido, não no sentido “Humano” da palavra. Trabalhar exige disciplina, horário, esforço, resistência. Trabalhar cansa. Significa assumir (e cumprir!) responsabilidades. E, mais do que tudo isso, significa ser necessário para fazer algo funcionar. Perdoe seguir o chorume, mas quão necessário você é para algo?

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Perdoe-me a indelicadeza, a indiscrição. Mas ser necessário é bem diferente de ser querido, ser amado. Isso, é claro, todo mundo quer, mas esperar que êxito profissional decorra apenas dos seus talentos inatos é tão inconsequente quanto quem espera diagramar uma revista apenas porque aprendeu a mexer no Corel ou no Indesign. Quem acha que é fotógrafo porque sabe ajustar o foco da câmera semi-profissional. Seu descolamento, seu hypeness, sua beleza e sua inteligência – ou de qualquer pessoa – jamais serão necessários. É o que você decide fazer com eles que pode – ou não – se tornar algo significativo e, por que não dizer, valioso.

Agora, antes que alguém cante a bola do “vendido para o sistema”, gostaria de lembrá-los que Damien Hirsch, Matthew Barney e Marina Abramović, para citar alguns exemplos, estão longe de ser pobretões. Na verdade, se parecem mais com empresários do que com o povo do Baixo Augusta. Eles são gente de humanas que procuraram usar toda sua “humanidade” para fazer algo tão único, tão diferente, que freelancer nenhum seria capaz de entregar. Ah sim, eles são todos grandes expoentes da arte contemporânea também e trabalham pra caramba. Terry Richardson até parece porralouquinha, mas ele administra estúdios, viagens, eventos, redes sociais, é praticamente um projeto de comunicação. Ah, e fotógrafo. Mauricio de Sousa não é um empresário: é quadrinista. Lembra?

Se você acha o mundo corporativo chato e quadrado, cadê sua humanidade toda lá dentro, pra arredondar isso? Por que essa vontade toda de mudar o mundo tem que ficar restrita a atividades sem fins lucrativos? Seu lugar de trabalho ideal não existe? Cadê você criando esse lugar, com essa criatividade toda que Deus lhe deu?  Até porque, Zuckerberg não é de humanas mas você adoraria trabalhar no Facebook, hein? Google? Sergey e Larry são exatóides do pior tipo!

Não sei se isso é coisa nossa, também, assim, brasileirinha. Acho engraçado que um país imperial como o Japão seja mais republicano do que a nossa república federativa. A falta de preocupação com o outro sempre leva a achar que dá pra empurrar a vida com a barriga. E se ela for de tanquinho, aguenta até mais peso. Um jeitinho todo brasileiro de encarar o trabalho – ou sua ausência – e levar a vida na ginga, no bole-bole, enrolando o tempo e esticando a festa. Tem gente que tem tanta raiva de trabalho que nem pronuncia a palavra e seus derivados: chama de trampo. Mas paremos antes que me acusem de endireitamento.

Então, desculpem, mas embora eu tenha estudado humanas, inclusive seguindo uns bons passos de carreira acadêmica, eu acho que não sou uma dessas pessoas aí que vocês andam falando. Até porque, não pude me dar ao luxo de ir me encontrar ou me achar nos Estados Unidos no meio da faculdade. Muito menos na Irlanda depois dela. Até fiz minhas viagens, mas com objetivos claros, às vezes profissionais, data de ida e volta e nenhuma, nenhuminha vontade de ficar por lá, porque eu tinha uma pá de coisas pra resolver aqui e escapismo, as humanas me ensinaram, soa meio pastoral, meio parnasiano.

O que eu estudei era muito sério e, embora envolvesse um monte de coisa divertida, envolvia também uma responsabilidade violenta. Até quando era arte, era sério o bastante pra ter prova. Não era papo de boteco. Às vezes, envolvia indicadores, mensurações. Sim, estudei humanas. Meu leite com pera era mais azedinho, acho. E minha amiga já se confunde em me classificar como designer. Se você não me acha “gente de humanas” ou se pareço “coxinha” ou “empresário” com esse palavrório, peço desculpas. Mas não se preocupe, nem se incomode. Para mim, é um prazer ser a prática da tua teoria.

“Triângulo amoroso” é uma ode ao artificialismo do universo

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“Triângulo amoroso” é desses filmes cujo título brasileiro desvirtua um pouco os sentidos do original. A produção, escrita e dirigida pelo alemão Tom Tykwer (celebrizado pelo já clássico “Corra, Lola, corra”) levava apenas o simples e preciso nome “3”, em algarismo mesmo. Um título que sintetiza com maestria a obra que batiza.

“Triângulo amoroso” conta a história de um, como se pode imaginar, mas nada parecido com o verniz de açúcar, meio cult, de produções como “Três formas de amar” ou “Splendor – um amor em duas vidas”. Aqui os protagonistas já estão por volta dos 40 e, se não são bem resolvidos, tem estrutura suficiente para perseguirem seus desejos. Simon (um adorável Sebastian Schipper) é casado com Hanna (Sophie Rois). Ele possui uma empresa que “executa” obras de arte, especialmente esculturas. Ela é apresentadora de um programa de TV intelectualizado, cheio de academicismos e entrevistas complexas. Em situações diferentes e sem saber, ambos se envolvem com Adam (Devid Striesow), um pesquisador de células-tronco.

Mas nada é tão simples quanto parece e a própria forma como a trama se apresenta já dá um gostinho do que se pode esperar. A primeira cena do filme é um grande plano-sequência com imagens que fazem lembrar o brilhante clipe de “Star Guitar”, dirigido por Michel Gondry para os Chemical Brothers. No áudio, uma voz masculina quase sussurra o que poderiam ser “palavras-chave” para buscar o filme que está pra começar no Google. Como se estivesse separando os reagentes para uma experiência prestes a começar. O que não é de todo mentira.

No que parece ser uma clara influência dos romances experimentais, fundados por Zola e seu naturalismo, o filme se propõe como um grande “experimento social”. Essa intenção aparece ecoada na trama pela ciência e pela arte, elementos com os quais todos os personagens estão envolvidos. E é aí que surge a regência firme, controlada, de Tykwer, quase de forma a garantir que seu experimento não seja influenciado por fatores externos. Ele parece se esforçar – seja pelas situações que cria no roteiro, seja pelos enquadramentos, pela direção de atores e até pela direção de arte – para deixar muito claro que tudo ali é artificial, controlado, criado. Porém, dada a naturalidade com que a história transcorre, o filme ricocheteia sobre o próprio suporte devolvendo ao espectador a incerteza da naturalidade em que pretensamente vive. E aí, “Triângulo amoroso” se torna algo muito mais universal do que uma trama sobre três pessoas envolvidas romanticamente: se torna uma obra de exaltação ao artificialismo do mundo (inclusive daquilo que, a princípio, seria “natural”).

Por isso há espaço, ainda nos primeiros minutos, para uma representação minimalista da trama que está para transcorrer, só que em forma de dança contemporânea, com uma câmera que baila por entre os dançarinos, quase à Carlos Saura.

Há também espaço para várias sequências que transcorrem simultaneamente na tela dividida, no estilo celebrizado por Mike Figgis com seu “Timecode”. Isso sem contar situações e soluções de direção que, num filme qualquer, seriam apenas gratuitas, mas que aqui reforçam a busca de Tykwer por mostrar o quanto o artificialismo permeia todas as relações e, assim sendo, permite que o ser humano, ciente disso, as ajuste em busca de sua felicidade.

É aí que o “3”, numeral, se mostra mais adequado para batizar um filme que se esforça em direção ao universal, fundindo-se  à arte e à ciência.


Assista ao trailer

Natureza X Cultura

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Sempre fico tentando ler aquelas TVs do metrô. Primeiro porque trabalho com coisa parecida e dali já me veio muita inspiração. Segundo porque tem bastante coisa legal lá. É que pra descobrir, você tem que driblar cotoveladas, ultrapassar obstáculos e manter o equilíbrio, torcendo para conseguir ler a programação antes de alguém entrar na frente.

Aí hoje, do nada, me vem uma notícia sobre uma pesquisa de Harvard.  Descobriram que o fato de o homem cozinhar a carne pode ter afetado nossa evolução animal. Deu-se que enquanto a maioria das pessoas pensava na morte da bezerra, eu comecei a pensar no que a sua carne podia render, ficando extasiado por alguns momentos com a ideia de que, afinal, natureza e cultura são meio que uma coisa só.

Pensa comigo: é fácil imaginar a evolução como um processo biológico, “natural”, portanto. De repente, um anfíbio conquista a terra e, alguns milhões de anos mais tarde, temos répteis. Coisa que a natureza fez sozinha, na base do acaso. Mas de acaso em acaso a galinha encheu o papo, que virou esôfago e desembocou na gente, ser humano e tudo mais. E gente, sendo gente, tem cultura. O homem só é o Homem porque criou formas de adaptar o ambiente ao seu redor, diferente de outros animais. E aí vieram códigos, linguagens, Descartes, o estruturalismo.

Então tinha a natureza de um lado, o nosso “Id”, essa coisa instintiva, suja, suada, animal. E, do outro, tinha a cultura, o “Super ego”, a noção de que tem que comer brócolis pra ganhar sobremesa, trabalhar para ganhar pão, estudar pra não tomar pau e ser bonzinho pra não ir pro inferno. Aí vem essa notícia e bagunça tudo deliciosamente. Porque vai, foi só mais um acaso da natureza que fez um hominídio assar a carne numa fogueira um dia. Aí ele come, instintivamente, porque precisa sobreviver. E ele viu que isso era bom. Aí todo mundo começa a comer também, o cérebro cresce, o corpo aumenta… e de repente estamos jogando pedaços de ossos pra cima ao som da sinfonia “Assim falou Zaratustra”.

Agora, imagina a confusão que vai dar se esses cientistas continuam metendo o dedo nessa ferida narcísica. Porque assim, tem gente que acha que a língua (o código que o homem criou depois de comer carne cozida) é sistema para explicar o mundo. Imagina a confusão em pensar que, na verdade, o mundo é que é sistema para explicar a língua. Aliás, menos: a língua é um micro-sistema dentro de um outro, muito mais complexo e que, ao que tudo indica, a gente ainda nem entende direito. Vide o que acabamos de descobrir.

Melhor ainda: sendo as duas coisas, quem sabe, uma só, a cultura talvez nem seja uma forma que temos de “adaptar o meio que nos cerca”. Sequer seja uma vantagem evolutiva. Quem sabe essa coisa de vestir roupas em vez de carapaças não é só mais um acaso dentre muitos, que, no futuro, talvez faça nossos pelos caírem ou nos tornarmos mais frágeis do que já somos. Será que discutir o novo clipe da Britney, daqui a pouco, vai afetar nosso cérebro? Se eu tiver um bebê, vou pôr Mozart pra ouvir. Deve ter uma explicação biológica pra essa lenda urbana…

Nessas, acabei lembrando inclusive do vídeo Meat Love, que já postei por aqui. E também da deliciosa forma como Glenn O´Brien fala de estilo e etiqueta como se falasse de sobrevivência na selva em “How to be a man” (que é assunto pra outro dia). Por motivos, imagino, não tão óbvios. Mas vai, confio em vocês…

Eu talvez pensasse mais e chegasse a conclusões ainda mais absurdas. Mas o metrô chegou na minha estação e eu desci…

* Post ilustrado com obras de Pierre Javelle, que diminui cenas da “cultura” para misturá-las, por exemplo, com a carne que a fez surgir. Mal passada…

Uma mitologia almodovariana

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Almodóvar não poderia ter acertado mais ao escolher o nome “El deseo” (“O Desejo”, em português) para sua produtora. Está pra nascer um diretor cujo o tema das obras seja tão centralmente o desejo: sexual, doentio, inocente, infantil ou mesmo sanguinário, é de desejo que fala cada um de seus filmes (vale lembrar, nesse sentido, o excelente “A lei do desejo”). E, sendo o desejar humano algo que pode se considerar “perigoso”, as tramas sempre resvalam para aquele espaço descontrolado e meio animalesco da essência humana, onde o instinto e o tesão parecem valer mais do que a lei e a cultura.


É o ponto em que Almodóvar encontra Hitchcock, diretor a quem não se cansa de reverenciar e cujos filmes ecoam insistentemente na obra do espanhol. Em “A Pele que Habito” não foi diferente. Ou, se foi, é porque Hitchcock está ainda mais presente, levando o suspense a um extremo que vai fazer os amantes do gênero se refestelarem com este festim diabólico.


É difícil fazer uma sinopse de “A Pele que Habito” sem entregar alguma coisa sobre o filme. Tamanho é o suspense, que a nova produção de Almodóvar pode ser comparado aos primeiros filmes de Shyalaman no sentido de que qualquer spoiler pode tirar toda a graça da produção. Sendo assim, basta dizer que o filme conta a história de, Robert Ledgart (Antonio Banderas), um prestigiado cirurgião plástico espanhol que tenta criar uma pele artificial perfeita para sua esposa, Laura (a belíssima Elena Anaya) deformada por um acidente de carro.


As cores saturadíssimas, as mulheres almodovarianas, a latinidade, está tudo lá, como convém a um legítimo Almodóvar. Levar a trama para Toledo, a famosa cidade medieval do interior da Espanha, torna o filme ainda mais atraente, misturando novo e velho num cenário exótico. Exotismo, aliás, transborda em cada locação, como a mansão de Robert, adornada com gigantescos nus fazendo contraponto a um mobiliário moderno, que poderia estar num loft do Soho. Uma das cenas, rodada no jardim desta casa, todo adornado com velas para uma festa, cria uma imageria que faz lembrar Bosch e, com certeza, deve ficar na memória de muitos cinéfilos.


A atuação do elenco também deve ser destacada, especialmente as de Anaya, Banderas e Marisa Paredes, que vive Marília, a governanta da casa. Precisas em criar nuances que estão lá desde o começo, mas que o público só perceberá na medida em que o roteiro (adaptado do romance “Tarântula”, de Thierry Jonquet) as contar, cada um desses personagens desabrocha numa espiral de tirar o fôlego. Tudo por meio de uma montagem que viaja no tempo sem fazer muita cerimônia.


Mas é realmente a direção de Almodóvar que faz de “A Pele que Habito” um dos filmes mais interessantes do ano. Criando o que pode ser considerado uma mistura de “Splice – A nova espécie” e “O segredo dos seus olhos”, o diretor acabou por tecer uma “mitologia” que parece estar presente em toda sua obra, mas que nunca tinha sido trazido à tona de forma tão elucidativa. De novo, não é possível falar muito sem tirar do filme o brilho da surpresa, mas digamos que, além da excelente trama de suspense, o filme se afirma também como um ensaio sobre o desejo em si, esta matéria prima para o cinema de Almodóvar. Um desejo que transcende corpo, gênero, ciência, cultura e a própria noção de ser humano.

O que aprendi com a Mostra

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Daí que eu resolvi tirar férias pra ir à 35a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E eu moro em São Paulo. “Mas você não vai viajar nas férias?”, perguntaram-me diversos pares de olhos arregalados. Não, eu não viajei, não no sentido estrito. Eu mergulhei numa maratona que terminou anteontem e que só agora me permitiu renovar as energias pra vir aqui escrever.

Eu não me arrependi da ideia das férias, já adianto. Mesmo estando mais cansado do que antes de tirá-las. Mesmo descobrindo que as pessoas de gosto semelhante ao meu não se parecem em nada comigo. E inclusive sabendo que consegui ver menos filmes do que eu planejava – era isso ou estafa.

Mas, para a próxima vez que eu for fazer isso, – porque sim, esse gato se escaldou em água fria e continua corajoso – vou prevenido, com umas liçõezinhas que eu aprendi. Tomei a liberdade de dividí-las com vocês…

1 ) Velhinhos fazem mais barulho que Transformers – Não, não me olhem com essa cara de horror. A maioria dos idosos no evento não tem nada a ver com o velhinho sábio, talvez rabugento, de alguma forma debilitado e com uma ternura nos olhos. Não é o velhinho a quem você gostaria de ceder o assento no metrô. Não. São umas pessoas que entram berrando na sessão, pra que todo mundo ouça a voz da sabedoria bradar o filme que, pra elas, foi o melhor da Mostra (isso no primeiro dia).  Pessoas que cumprimentam e puxam papo com qualquer um que se sente perto (ou nem tão perto, porque o lance parece ser gritar), dizendo: “Dei entrevista no Jô ontem.” Gente que avisa pra sala inteira que é bróder do Cakoff. Que briga com a bilheteria porque tem certeza que o filme a ser exibido é tal e não o que o bilheteiro diz. “Esses filmes de hoje não são lá muito bons, não! Imagina, eu cresci vendo De Sica, Fellini!”, gritava um deles. Pois é, e se nem assim você aprendeu a ter um mínimo de educação e humildade, tio, vai ver Michael Bay que é barulhento que nem o senhor…

2) A crítica está crítica – Nunca fui muito com a cara da “crítica” de cinema no Brasil. Entre aspas porque, de cara, já discordo do que o nome sugere. Minha visão: a função do crítico é educar o público para que ele, munido das referências e argumentos mínimos, possa formular suas próprias impressões e, consequentemente, seu gosto ou desgosto sobre um determinado filme. Mas a minha visão é míope e estrábica (sério!), então ignorem. Crítico que é crítico, no Brasil, em primeiro lugar, faz questão de dizê-lo. Não é uma questão de amar o cinema e curtir seus momentos com essa arte. É uma questão de contar nos dedos, no Facebook, no Twitter, em Molekines e onde mais for possível, o número de filmes vistos, competindo sempre para que ele seja maior que o dos colegas. É se enfiar no cinema até o último minuto, mesmo sem se aguentar de pé, e contar pra geral que você tá lá, firme e forte  (“olha, um repórter!”). É ver um filme que você achou um saco, mas, sabendo que a maioria também deve ter achado, já adiantar que se trata de uma “puta obra” (porque crítico que é crítico é descolado e fala “puta obra”) e desandar a pinçar as indiscutíveis qualidades artísticas do filme, até pra ver se elas superam a chatice óbvia do mesmo.

Enfim, ser crítico é ser alguém que, ao tratar a Mostra como se fosse o Pan, está mais preocupado com o quadro de medalhas do que com a diversão de praticar o esporte que ama e incentivar quem nunca competiu a dar seus primeiros passos. E, de novo, me surpreende que alguém que veja tantos filmes (e tão bons!) não aprenda com eles o mínimo necessário para ser uma pessoa melhor que, sei lá, o Galvão Bueno…

3) O cinema pode até ser arte. Mas ninguém quer saber de tratá-lo assim – Você já viu um crítico de arte dando nota pra um quadro? Um connoisseur usando palavras como “besteira” ou “babaca” para falar de uma bienal ou, menos ainda, de um romance? Até houve uns críticos aí que meteram o pau num tal de Monet e sua patota, chamando sua arte, na época tão descabida, pelo nome de “impressionismo” (era pra ser pejorativo). O mesmo vale pro cubismo, pro fauvismo, etc… Acontece que, daí pra frente, a crítica de arte aprendeu a ser mais comedida, a procurar entender melhor a arte que criticava, até pra não falar besteira. Ou não.

Até porque, andei observando: são raros, quase nulos, os críticos de cinema que põe sua arte para conversar com as outras. Dão-lhe o nome cafona de “sétima arte”, mas cagam solenemente pras outras seis. Pra que relacionar o cinema com pintura, escultura, teatro, literatura? Bobeira, vamos falar do que a gente entende e trabalhar para que continuemos sendo os únicos a entender, para garantir o ganha-pão. Não tá fácil pra ninguém.

Cena de “Desapego”, de Tony Kaye

Que o cinema é arte, é consenso, ninguém parece ter dúvida e todo mundo adora dizer. Mas então, amiguinhos, vamos brincar de tratá-lo como tal? Quando fui assistir “Desapego”, filme do Tony Kaye, numa sessão dessas de manhã, onde a maioria do público eram críticos e estudantes de cinema, fiquei até com um pouco de vergonha de ter adorado o filme. Para mim, eu tinha acabado de ver um longa muito bom, que reunia algumas das características que considero mais interessantes numa obra daquele tipo. Se fosse escrever um texto sobre ele, dissecaria estruturalmente essas características e deixaria para você, que resolvesse ler, decidir se o filme era bom, ruim ou qualquer coisa. Mas os meus colegas de sessão, munidos de anos de experiência e muitas horas em salas de projeção já começaram a esbravejar ali mesmo que era uma “porcaria”. Pensei comigo:”entendo bosta de cinema, mesmo”… Não é que o dito cujo foi um dos premiados pelo público? Devo lá ter meus palpites…

É aí que a galera da sessão da manhã dá aquele sorrisinho esperto, quase irônico. Aquele que diz pra gente que eles, possuidores que são de tão raro e intenso conhecimento, tem mais capacidade de julgar do que essa massa disforme, o público. Eles, muito mais uniformes, repetem a premiação de um outro festival maior: e o prêmio da crítica vai pra um filme que deixaria a maior parte do público entediada e pronto, acabou. Jurado de miss e “crítico de cinema”: você nunca vai entender a cabeça deles. Concurso de miss é arte, aliás?

O dilema aqui parece bem simples: educar o público o tornaria capaz de formar opinião tanto quanto os críticos. Mas poder é gostosinho e ninguém quer abrir mão dele. Então deixa eu ir ali ser formador de opinião e chamar um trabalho que eu nunca fiz de “besteira”. Volto já…

4) Tá faltando pipoca na vida da galera – Cinéfilos do meu coração: se tem uma guria mexendo num tablet duas fileiras a frente, sem fazer barulho, não há porque você berrar pra ela desligar no meio da sessão. A não ser que você esteja prestando mais atenção nela do que no filme. Nesse caso, você é ainda mais idiota do que o grito sugeriu. Assim como toda arte, cinema também é diversão. E se você não concorda, certeza que o problema é falta de pipoca…

Obra de Cristopher Wool

Então é isso. Mostra que vem, talvez eu esteja lá de novo. Mas já vou preparado, com fones de ouvido pra ignorar a falação, com livros pra ocupar o tempo e programações alternativas para me lembrar que, apesar de gostar da mesma coisa que a maioria das pessoas que estão lá, sou muito, muito diferente delas. Tanto que, te digo, não fiz um amigo sequer durante toda a Mostra. E olha, ainda bem…

Ressuscitou

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Acontece que eu resolvi ressuscitar/revirar isso aqui. Vai ser igual antes, só que diferente. Porque vai ser mais verborrágico e menos “comercial”. Ou não. Já volto pra escrever algo que preste…

Da angústia de ser

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Tem algo de lacaniano em Natimorto, de Paulo Machline. É muito símbolo, muita psicanálise, muito fluxo de consciência e des-curso rodeando dois personagens perturbados pela existência. Adaptado da obra de Lourenço Mutarelli (autor de “O Cheiro do Ralo”, que já foi pras telonas pelas mãos de Heitor Dhalia), Natimorto é filme-filosofia e não é distração. É interessante, às vezes soberbo, às vezes impressionante, sempre inteligente, mas em nenhum momento serve para nos distrair dos problemas ou da realidade. Do contrário, nos arremessa de frente contra eles, em tempo de nos arrebentar o nariz. A recompensa é aquela sensação prometeica de estar uns milímetros mais perto do desconhecido, ou seja, nós mesmos.

A trama trata de um caça-talentos musical – essa profissão existe? – e uma cantora, que se não é lírica, transborda lirismo. Ambos sem nome. Ele, interpretado pelo próprio Lourenço Mutarelli, brincando de misturar criador e criatura. Ela, uma resplandecente Simone Spoladore que, quando canta, silencia –“ Silencio, no hay banda”, gritaria David Lynch lá de sua esfera de influência.  Aliás, a mudez cai bem em Simone, que não precisou falar palavra para arrancar suspiros em “Lavoura Arcaica”. Eis que ele resolve largar a mulher, e, com a naturalidade de quem propõe um café, pede que a cantora se tranque consigo num quarto de hotel em São Paulo e não saiam mais. Para nada.

A atuação de Mutarelli é confusa, quase engolindo palavras enquanto vomita frases quilométricas. Sabe-se lá se é inexperiência de quem atua pela primeira vez ou transbordo de um personagem que de segurança tem muito pouco. Simone serve de talentoso e suave contraponto, amortecendo com olhares, às vezes risadas, os balaços disparados pelo colega de protagonismo.

Simone e Mutarelli em cena: individuação do sujeito ou sujeição do indivíduo?

E, com isso, está dada a largada para a sessão de análise. Ele é pura pulsão de morte. O haver querendo inutilmente não ter havido com uma ânsia misantrópica. Quer ser “natimorto”, que antes mesmo de vir a ser, já não é mais. Ela, por sua vez, quer dar significado à sua vida e vê na promissora carreira uma possibilidade de haver ainda mais brilhantemente. E, no espaço aberto pelo indivíduo ao se partir ao meio, instala-se uma curiosa mania: a de ler o futuro nas estampas do verso dos maços de cigarro. Como num baralho de tarô. E feito duas pitonisas, que precisam exalar vapores para fazer previsões, os dois mergulham na nuvem de fumaça de seus próprios cigarros, frustrações, medos e conflitos.

O canto silencioso: é perfeito porque nunca chega a existir

Diferente de Dhalia em “O Cheiro do Ralo”, Machline opta por não temperar com sarcasmo o mundo doentio de Mutarelli. Ele o serve cru, literalmente regado a vermes e carpetes mofados. E se por um lado a fotografia granulada e diáfana de Lito Mendes da Rocha enche o filme com nuances de neon da rua e a materialidade da película, por outro, a direção sádica de Machline brinca de torturar personagens e atores  – lembrando um pouco Aronofsky.

Também há qualquer coisa do “Anticristo” de Von Trier nessa verve psicanalítica de abandonar um homem e uma mulher à própria sorte.  “Anticristo” enveredava pelos delírios da sexualidade e do trauma, sendo quase freudiano. Natimorto já se mete com filosofia para revirar as entranhas da angústia de existir e, talvez por isso, ganha ares lacanianos.

Mutarelli mistura criador e criatura (s) em seu personagem

Mais do que disposição, Natimorto exigirá erudição de seu público. Quem não tem muita ideia de quem sejam Nietzsche, Lacan, Magritte ou Eça de Queiroz e suas respectivas obras pode achar tudo meio chato. O roteiro não apenas referencia essas figuras, mas traz suas obras e biografias para o meio da discussão. Não conhecê-las significa, pelo menos em alguns momentos, boiar. Um risco assumido pelo diretor ao não fazer como Ron Howard, que transformou  certas cenas de  “O código Da Vinci” em algo bem parecido com uma apresentação de Power Point, dessas corporativas.

Jeune fille mangeant un oiseau (Le plaisir)  – A obra de Magritte é uma das muitas referências de Natimorto

Mas, riscos assumidos, vale repetir, a recompensa é das grandes. A certa altura do filme, o personagem de Mutarelli grita angustiado que não consegue se ver . Afinal, no espelho, só se enxerga invertido – e dá-lhe Lacan com seu “estádio do espelho”. Assistir Natimorto e entregar-se à experiência diferenciada proporcionada pelo filme é vislumbrar, ainda que por um átimo, a própria imagem, sem inversão. Para o desgosto de Narciso, que acha feio o que não é espelho…

Pânico está de volta para mostrar como se faz

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11 longos e sangrentos anos. Foi o tempo que o público teve que esperar até que Wes Craven recobrasse o ânimo – e recebesse uma proposta polpuda o bastante – para retomar sua franquia Pânico (Scream), que tanto fez a alegria da galera lá pelo fim dos anos 90. E se você é da turma que adorava ver Sidney quase-morrendo enquanto dava uns berros no cinema, pode comprar a pipoca e se jogar: Pânico 4 (Scream 4, 2011) deve compensar a espera.

Craven é espertinho. Vamos admitir: o cara, que já tinha uma bagagem boa, revolucionou o gênero suspense/terror lá pela época em que Pânico surgiu (1996). E fez isso de uma forma bem divertida: primeiro, retirou do filme todo o aspecto trash que era imperativo em produções que iam da série “Sexta-feira 13” até coisas como “A volta dos mortos-vivos”. Não que o trash fosse ruim. Mas era meio indigesto pra um público que, até então, ia ao cinema pra ver “O Rei Leão” e “Gasparzinho”. Foi preciso menos intestinos de mentirinha e mais sustos de verdade, além de uma produção minimamente cuidadosa, pra fazer tudo parecer bem feitinho. E deu certo. Pânico virou filme que lotava cinema. Aliás, que passava no cinema, bem diferente da maioria de seus companheiros de gênero dos anos 90.

Aí veio a segunda sacada: sabendo que um assassino vestido com uma capa e uma máscara era algo um tanto ridículo, principalmente em se tratando de um assassino cuja arma principal é um faca, Craven e seu roteirista, Kevin Williamson, fizeram como ele e vestiram a carapuça, assumindo esse ridículo. Fizeram de Pânico um Shrek dos filmes assustadores – muito antes de Shrek existir. E desde que a Nouvelle Vague ensinou Hollywood a brincar com gêneros, foram poucas as vezes que isso deu tanto certo quanto na (até então) trilogia Pânico. A metalinguagem foi tão bem sucedida que passou da simples referência até a literal produção de um filme como mote do roteiro de Pânico 3. Tudo isso numa série em que o assassino faz questão de perguntar às vítimas: “Qual o seu filme assustador predileto?”

Só que Pânico 3, em 2000, parecia ser o fim da série. O próprio Wes Craven afirmou veementemente que não faria continuações. Até que no ano passado surgiram os rumores: Pânico 4 estava sendo produzido. E o desafio era grande: há 11 anos atrás, a franquia era o supra-sumo em seu gênero mas, agora, depois das adaptações do terror japonês, da série Jogos Mortais e da Internet (nem DVD existia direito quando o primeiro Pânico chegou às telonas!), a coisa seria bem diferente. Principalmente se levarmos em conta que a franquia “Todo mundo em pânico”, sátira escrachada baseada nos filmes de Craven, é tão famosa quanto os próprios filmes. Ou mais.

Pois bem. Craven manteve-se fiel à sua fórmula e, mais uma vez, assumiu o ridículo, por assim dizer, do que estava fazendo. Como um dos personagens diz: “A tragédia de uma geração é a piada da geração seguinte”. E hoje tem marmelada? Tem sim, senhor! O filme já abre criticando seus “concorrentes” e deixando claro a que veio: o bom e velho Pânico está de volta. E, se ele não é seu filme assustador predileto, vai fazer de tudo para ser, alternando cenas genuinamente desesperadoras e apreensivas com momentos constrangedoramente absurdos.

É preciso ter pelo menos uma pequena noção dos filmes anteriores para entender tudo que acontece em Pânico 4: Sidney Prescott (a mesma Neve Campbell do primeiro, segundo e terceiro filmes) volta à Woodsboro, sua cidade natal, para lançar o livro em que conta como sobreviveu à tragédia que matou basicamente todo mundo que ela conhecia quando jovem. Além dela, sobraram sua amiga Gale (Coutney Cox) e o agora xerife Dewey (David Arquette). E é claro que se Sidney volta, um novo assassino vem atrás e daí pra frente não é preciso conhecer a franquia para aproveitar: é o típico filme de serial killer, no estilo eternizado, justamente, pela série Pânico.

Para quem sente saudade dos anos 90, a fotografia de baixa profundidade de campo e iluminação sombria, além da falta de filtros na contra-luz, vai trazer uma sensação nostálgica de estar assistindo ao filme num VHS, como é bem provável que você tenha feito em algumas das três primeiras versões. Mas pára por aí. Como diz o slogan do filme, “Nova década, novas regras”. E dá-lhe clichês fresquinhos a serem explorados, indo da câmera-amadora-na-mão até o filme-dentro-do-filme, passando por uma piadinha tão boa quanto infame com Robert Rodriguez.

Pânico 4 vem para mostrar que faz parte de uma série que – quem diria! – virou cult. Mérito de Craven e Williamson, por refrescarem o gênero que se propuseram a trabalhar, dando-lhe nova cara. Mas também vem para divertir, te deixando pra cima até com a trilha dos créditos finais, ainda que sendo um filme de terror sobre assassinatos. Mérito de seus atuais “concorrentes” de gênero, que, no fim das contas, só servem mesmo para chacota.

Assista ao trailer

Sucker Punch é uma viagem

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Quando um filme começa com cortinas de veludo vermelho que se abrem, meio vaudeville, e você espera que o que vem em seguida seja muito diferente disso, das duas uma: ou você é chato ou o é desinformado. Pode ser que seja os dois e, nesse caso, vai chafurdar coisas como feminismo (ou machismo), auto-superação e até psicanálise em “Sucker Punch – Mundo Surreal” (Sucker Punch, 2011).  Nenhum problema, é claro. Exceto que vai achar o filme uma requintadíssima porcaria. Agora, se você é do tipo que poderia ter frequentado o Cassino da Urca na década de 40 ou cresceu jogando video-games, – e eu juro que a relação entre as duas coisas é mais estreita do que pode parecer – então prepare-se para dar pasto pros olhos e pra cabeça.

Desde “Madrugada dos Mortos”, pelo menos, Zack Snyder vem mostrando que está, sim, de brincadeira. Não é cinema pra você dizer: “profundo, interessante, retrato preciso e inspirador de tal coisa”, enquanto alisa o bigode. É pra você sentir e pronto, pra ser, literalmente, sensacional: mais ou menos o que a patota do Gombrecht chamaria de sensorial. E “Sucker Punch“, como o nome já sugere, vai por esse caminho com força. É a primeira vez que Snyder escreve um roteiro original.  Em parceria com Steve Shibuya, ainda por cima, cujo sobrenome nipônico me faz pensar que sim, a mente da japonesada é insana.

A trama se emaranha em torno de uma garota internada injustamente num hospício (que lembra bastante aquele de “Ilha do medo”) e os subterfúgios imaginários que ela inventa para driblar os problemas com os quais se depara. A vida lhe dá limões, ela faz uma limonada, sabe? Mas fique tranquilo: nada parecido com “Onde vivem os monstros”. Nossa heroína, Bady Doll (Emily Browning), usa maria-chiquinha e figurino ninfeta colegial meets Burlesque, o que por si só é mais divertido do que um garoto correndo por uma floresta, vestido de bicho de pelúcia. Além disso, ela tem como companhia as outras gurias do hospício, todas bem decotadas e safadinhas, além de prontas para lutar e quebrar tudo no tal mundo imaginário que Baby Doll cria.

Mas eu comecei falando do vaudeville e não voltei a ele. Perdão. Hoje em dia as linguagens são assim, fragmentadas mesmo. E o teatro de revista e os cabarés da vida tem lá sua culpa nessa história, viu? Numa só noite tem vedete fazendo dublagem, Carmen Miranda cantando marchinha, número de malabarismo e piada de salão, que  hoje vende melhor com nome de stand-up comedy. O cinema às vezes faz coisa parecida e se chama set piece. Isto é, uma sequência que “faz sentido em si mesma”, embora esteja compreendida num fio narrativo maior, no caso, um filme. Vai, você viu “Kill Bill” e se lembra muito bem de cada uma daquelas lutas, não lembra? Belíssimos set pieces. Quem gosta de Zhang Ymou também está bastante acostumado com suas sequências desse tipo, e estou pensando apenas em set pieces de artes marciais, para manter estreito o paralelo com “Sukcer Punch”. Mas até Godard faz isso, e todo mundo acha bonito.

Pois bem, a metáfora do vaudeville é abusada por Snyder, que transforma o hospício num cabaré e nos faz desconfiar que a Cher vai aparecer a qualquer momento pra botar ordem na casa. Só que nesse palco, cada número é um set piece de luta. E cada luta, por sua vez, um espetáculo à parte. Quer dizer,  se Russ Meyer estivesse vivo e jogasse PS3 depois de ter tomado chá de cogumelo, ele teria dirigido algo muito parecido com “Sucker Punch“.

Estamos falando de lutas ao som de Björk, no melhor estilo “Mortal Kombat“. Ou de uma batalha no meio de uma versão steampunk da Segunda Guerra Mundial. Aliás, essa é uma marca que permeia todo o filme: mérito gigantesco da direção de arte, comandada por Patrick Banister e Todd Cherniawsky (este último responsável por coisas que já tinham lá seu ar retrô-futurista, como “A Guerra dos Mundos” e o remake de “O planeta dos macacos”). Desde “9 – A Salvação” ou do chatinho “A Liga Extraodinária” que eu não via nada tão steampunk no cinema.

Fora isso, ainda temos combates medievais e espionagem futurista, numa mistura de gêneros e exagero visual que deve ter deixado até Baz Luhrmann com uma pontinha de inveja. E, preciso reparar, nossas chiquititas anabolizadas usam salto enquanto manejam katanas, pistolas e metralhadoras. Um primor. E dá-lhe montagem pra colocar tudo isso junto, ficar bonito e ainda fazer sentido.

E o que seria de um cabaré sem a música, não é mesmo? Tem Eurythmics cantado pela atriz principal, tem Queen misturado com hip-hop e, entre outras extravagâncias,  um número musical, tipo Bollywood. Deleite para tudo que é sentido. Um cabaré de sensações.

Tem um final surpreendente e anticlimático também, mas quem liga? Numa viagem dessas, o que menos importa é o destino. Fora o moralismo bobinho que tenta dar ao filme um tom palatável para as plateias americanas, ele fala numa língua que Guimarães Rosa conheceu bem: “Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz”.

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